Biografia
Há quem diga que a arte é fuga. Que o mundo criado pelo artista é uma possibilidade de despressurizar as intensas forças da realidade concreta, em direção a um refúgio de leis próprias no qual o exercício de controle traz alívio e sensação de segurança. Para o paulistano Lucas Rechtman, a arte não poderia estar mais longe desta definição.
Nascido em Tiradentes, extrema Zona Leste de São Paulo, e criado no Bom Retiro, o multi-instrumentista e produtor tem experienciado sua ânsia artística por meio de diferentes projetos. Foi baixista da banda Luzia entre 2016 e 2017 e enveredou por caminhos internacionais em uma residência artística em Seattle e na Califórnia, onde organizou eventos que mesclavam gastronomia e música, promovendo intercâmbio entre as culturas brasileira e americana. Assim, contrária àquela primeira definição, a arte do jovem paulistano nunca pareceu se refugiar, mas, sim, lançar-se ao mundo – reunir suas experiências e se deixar vulnerável perante o mundo. E é justamente desta vulnerabilidade, deste desejo de se colocar no mundo que Flutuar, seu primeiro disco autoral, nasce.
Para isso, Lucas veste a persona de Bossa Noise, um nome que deixa clara em sua construção a existência de contradições essenciais para a composição deste disco. A “bossa” vem no sentido mais faceiro, do sentimento mais suave que permeia o termo e com direito a algum intertexto do gênero durante as composições, ressignificadas sob uma roupagem Lo-fi. O Noise, por sua vez, não vem de uma maneira explícita na sonoridade, mas como reflexo daquilo que Lucas, por meio de sua música, digere. Ao escolher usar sua arte como enfrentamento, todo o barulho de fora é internalizado, ao invés de posto de lado. O “noise” se encontra nas minúcias de Flutuar pois, apesar de um disco que explora tons mais brandos, ele é produto de muita reflexão sobre o caos.
Assim, as contradições que Lucas parece tanto gostar também se encontram na matriz do disco: como produzir um trabalho sobre enfrentamento e vulnerabilidade em um contexto de pandemia, em que o isolamento é norma. É justamente neste aparente paradoxo que o projeto se edifica. A textura Lo-fi é um potente artifício para construir esta ironia do músico, pois nela há um toque manso e calmo ao mesmo tempo que ecoa uma tensão. Durante as sete faixas do registro estamos sempre tentando decifrar estes humores em termos binários, quando na verdade. Flutuar é construído em cima de um espectro complexo. Afinal, se ele é reflexo de um mundo que traz em sua raiz a marca de contradição e complexidade, seria muito ingênuo pensar que as coisas se apresentariam em uma norma maniqueísta.
Uma série de recortes de diálogos atravessados, unida a uma batida lenta e esquisita de “Intro Líquida”, já define o tom de colagem que nos acompanhará por todo o trabalho. Já “Tão Muito” se apoia em acordes de Bossa Nova para produzir uma narrativa existencialista-trágica, sobre “a dor de procurar caminhos mais seguros”. “Dark Spot” é um momento intenso, que revela o peso do isolamento, mesmo fora de um período de pandemia por meio de timbres ecoados e nostálgicos. Aliás, os ecos são grandes amigos de Lucas e ganham protagonismo, por exemplo, na mântrica “Doutor”. Por fim, “Consume” se apoia no suingue para construir uma crítica ao cotidiano tóxico, sobre o loop contemporâneo do trabalho – escondendo, brilhantemente, uma faixa ao final do trabalho com o título de “Laranjinha”, algo como um pequeno delírio dentro do mundano.
Flutuar é um disco dos enfrentamentos contemporâneos. Para Lucas não adianta fugir do caos – nossa própria existência já nos torna suscetíveis. Entretanto, encarar o mundo de frente se mostra um grande respiro também. E, como qualquer ato de respiração, é necessário colocar um pouco do ar de fora (por mais poluído que seja) para dentro. Para continuar vivendo, Lucas internaliza parte do caos e lhe dá novos sentidos durante o período de isolamento. O grande barato do disco é esse: transformar este caos em um produto novo e que cativa, pois não foge de sua verdadeira essência.
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